sexta-feira, agosto 22, 2014

Só queria um diálogo vadio - capítulo três

Clarice e Fred

F – Clarice!
C – Oi..
F – Você tá parecendo alguém...
C – Quem?
F – Aquela atriz talvez.
C – Quem?
F – A Patrícia Poeta.
C – Ela não é atriz...
F – Pilar. Patrícia Pilar.
C – Ela é loira...
F – Clarice!
C – Anh, Fred...
F – Clarice, a gente pode conversar depois sobre aquilo?
C – O que, Fred?
F – Aquele dia.

Acho que a Ana fica reparando demais em mim. Será que ela tem tesão em mim? Saco. Tenho que dar atenção pro Fred, ele tá precisando de ajuda...

F – Eu não queria te enfiar naquela situação;
C – Relaxa, Fred. Já resolvemos isso da outra vez.
F – Mas parece que alguma coisa ficou sem resolver.
C – Fred, já provou o quiche da Denise?
F – Quem é Denise?
C – A namorada do Vi...
F – Ah, sei. Tá ótimo o empadão.
C – Quichê.


Fred fala de modo completamente apressado e sem firmeza. Ele sempre foi assim. Conhecemos ele quando o apelido dele era Poeira. Cheirador de poeira.

F - Eu to te devendo algum dinheir?
C - Não precisa se preocupar, ok? Aproveita a noite. Adorei que você fez a barba, você deveria sempre fazer a barba. Fica ótimo assim, sem barba.

terça-feira, agosto 19, 2014

Só queria um diálogo vadio - capítulo dois

Ana e Clarice

A- Ai, que susto, Clarice!

C- Tava aonde?

A – Fui falar com o Calé.

C – Vem comigo no banheiro?

A – Claro.

Acho normal duas mulheres irem ao banheiro juntas. É cultural praticamente. Mulheres vão ao banheiro juntas. Mas existia algo forçado na Clarice ao querer que eu fosse ao banheiro com ela. Não que nós não fossemos íntimas. Éramos íntimas. Escolhíamos fazer matérias na faculdade só para ficarmos juntas e sair pra beber depois, essas coisas. Só que esse ritual de banheiro não fluía com ela. Parecia que ela queria que eu fosse lá e que eu visse ela nua. Porque até quando tinha cabine, ela fazia questão de fazer xixi com a porta meio aberta e se enxugar quase que de pé, abrindo a porta. Achava aquilo estranho. Ela sempre puxava assunto “só para mulheres” comigo depois disso, reforçando que ela gostava e tinha fortes opiniões sobre homens.

C – O que houve com o Calé?

A – Nada. Acho que o pai dele que não tá bem.

C – Por que?

A – Não sei. Ele não quis contar.

C – Deve ser invenção do Calé. Ele adora fazer esses rituais deprês para depois beber e dizer que nós mudamos muito e que blablabla que bom que a nossa amizade resiste. Enfim. En-te-diaaante.

Clarice adora cantar palavras. Clarice e eu entramos no banheiro.

C – Eu acho o Calé muito auto destrutivo. A gente ficava uma época, lembra?

A – Aham.

C – Pois é. Eu achava uma coisa muito estranha. Ele não queria transar toda vez que a gente saia. Muitas vezes a gente só saia pra conversar mesmo. Como se ele ignorasse que a gente já tivesse ficado.

Ela abre a calça.

C- Ou que ele já tinha enfiado o pau dele em mim antes.

Clarice olhou pra mim como se eu fosse reprovar o modo dela falar.

A – Relaxa, amiga.

C - Po, então,um saco.

Ela abaixa a calcinha, ainda em pé e se olha rapidamente no espelho.

C – Ficamos muito distantes desde aquele tempo. É uma droga quem não sabe manter a amizade depois de ter transado. Acho o Calé bonito.

A – É. Mas é o Calé né.

O xixi começa a cair na privada. Eu transaria com o Calé. Eu transaria com o Calé e a Clarice juntos. Mesmo sabendo dos riscos da nossa amizade depois.

C – Ele manda bem.

A – Eu transaria com ele.

C – Ainda dá tempo.

Sobe a calcinha. Olha o bumbum no espelho.

C – Ai, ainda tá.

A – O que?

C – Roxo.  Levei uma mordida bem aqui.

Afunda o dedo no bumbum direito.

A – Tá ficando com alguém?

C – Ninguém em especial. Aquelas histórias que eu arrumo pra minha vida sempre.

A – Pelo menos é divertido.

Ela sobe a calça, mas não fecha o zíper.

C – É.

Um silêncio. O barulho da água da pia caindo.

A – Vamos?

C – Tá com pressa?

A – Quero comer o quiche da Denise.

C – E o que você achou dela?

A – Achei ela muito divertida. Tem o humor que combina com o Vitor. Acho que ela vai fazer bem a ele.

C – O Vitor não tem jeito,  Ana.

A – Todos nós temos.

Eu sinto que a Clarice tem um pouco de incomodo com a minha calma e esperança nas pessoas. Ela é mais explosiva.

C – Deus te ouça. Ou Buda, Alah, qual é o Deus da India?

Ela fecha o zíper.


A – Vamos?

C - Sim, senhoooora.

Clarice canta a palavra de novo.

sexta-feira, agosto 15, 2014

Só queria um diálogo vadio - capítulo um

Calé e Ana

Eu tenho inveja de quem entende o tempo do outro. O tempo, o timing. Numa conversa, não importa qual o nível de intimidade, mal eu mando a minha sentença e já começo a pensar no que vem depois. Não dá nem jeito de ouvir direito o que alguém tem pra me falar. Até numa mesa cheia a única relação que tenho é a minha comigo mesmo. Num jogo de eterna atração e repulsa. Gosto mais de mim quando vejo os outros sorrirem e me detesto quando mato um assunto por falar como quem vomita as referências de uma vida.

 - Calé?

 - Oi.

 - Ta ai quieto, sozinho, por que?

 - Ta só distraído.

 - Pensando em que?

 ( ) meu pai ( ) trabalho ( ) Na Ebóla na África. ( ) No frio da noite

 - No meu pai.

 - Ele tá bem?

 - Tá.

 - Hum.

 - Velho.

 - É. Eles envelhecem. É uma droga.

 - Mas ele tá bem. Tem memória, caminha no calçadão, come Becel. Tá bem.

Que idiota! "Come Becel". Ela não vai entender a ironia do "come Becel", ela só vai te achar entediante por ter falado isso.

- Foi irônico.

 - O que?

 - O comentário da Becel.

 - O que foi irônico?

 - Como se "comendo Becel" garantisse ao meu pai uma velhice melhor.

 - O que tem de irônico nisso? Acho que não é ironia... 

- Então vamos discutir "figuras de linguagem", Ana.

Eu sou entediante. Prazer, Calé, o entediante.

 - Eu vou voltar pra sala, Calé.

 - Já to indo lá.

 - É por causa do sal da margarina?

 - Que, Ana?

 - A ironia. Você falar que seu pai come Becel e por isso é um velho saudável. Quando, na verdade, Becel ainda tem gordura e sal para entupir as artérias dele.

 Ana ri. Eu lembro de Ana pelas fotos que ela colocou no facebook quando estava na India. A viagem que mudou a vida dela. Ela estava muito bonita nas fotos e, sem dúvidas, voltou diferente. Mais espiritualizada. Mas eu ainda tinha esperança de resgatar uma velha coisa da versão da Ana que conheci. Ele se via evoluindo, eu a via tornando-se aquele tipo de mãe que coloca o filho num colégio em que os próprios pais participam da educação. Essas invenções "cool" para formar um novo ser "cool" que perpetue seu DNA. De merda.

 - Não, Ana. Não foi essa a ironia.

 - Ah não?

 - Não. A ironia consiste em imaginar que a velhice pode ser melhor dependendo da droga que você coloca no seu pão. Ok. Ok. Não foi uma boa ironia.

 - Ah. Acho que entendi agora.

- Que bom. Acho que não íamos conseguir nos entender.

 Ana fez uma expressão de compaixão típica das pessoas espiritualizadas. Quando ela percebeu que eu percebi aquela expressão, conseguiu ainda piorar aquele momento bizarro, batendo a mão nas minhas costas como quem diz "um dia você vai sair dessa e lembrar desse momento com um sorriso no rosto".

 - Ana, aquelas suas fotos da Índia eram incríveis. Você deveria fazer um curso de fotografia.

 - É. Um dia tomo vergonha na cara e faço.

 - Boa.

 - Vou pra lá, Calé. Ainda não comi o quichê da Denise.

 - Quem?

 - A namorada do Vitor.

 - Ah.

 - Que cara é essa?

 - Não acha que ela é legal e bonita demais pro Vitor?

 - Calé, Calé, o Vitor gosta tanto de você...

 - Eu também gosto dele. Infelizmente isso não faz ele ser mais bonito ou legal.

 Vitor e eu em 2003 comemos a mesma puta em Buenos Aires. Éramos esse tipo de amigos. Hoje é diferente. É como se a única coisa que eu pudesse falar de Vitor é que ele é um comedor de putas.

 - Você não vem mesmo? To indo.

 No pé de Ana que sai da varanda, eu repasso a conversa toda que tivemos na minha cabeça como um ritual de sadomasoquismo. Seria muito mais proveitoso para os meus amigos se eu me tornasse um clone da quiche da Denise por exemplo. Ou um poste para Ana estacionar sua bicicleta quando fosse buscar a filha no colégio hare-hare.